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Delírio de uma mente doentia, Bastardos Inglórios dirigido por Quentin Tarantino é um filme iconoclasta. Ao contrário dos últimos filmes ambientados na Segunda Guerra Mundial que procuram retratar a chacina nazista para comover o público, Bastardos Inglórios não tem a intenção de glamourizar o cenário horrendo dos campos de concentração para sensibilizar os espectadores. Em contraposição aos filmes recentes que espetacularizaram o terror da carnificina hitlerista para conquistar as bilheterias dos cinemas, Tarantino recusa a dramaticidade apelativa calcada na manipulação de emoções.

A proposta de Bastardos Inglórios é apresentar uma visão caricatural do nazismo – os soldados alemães são satirizados pelo diretor. Adotando uma linguagem irônica, Tarantino ridiculariza o partido nacional-socialista transformando os expoentes nazistas em figuras burlescas e quixotescas. O tom debochado do filme pode ser visto na imagem risível de Hitler. Ao invés do comandante imponente, Tarantino apresenta o Führer como um líder bufão. Os seus gritos histéricos são hilariantes.

Além da representação cômica dos nazistas, Bastardos Inglórios é um filme iconoclasta porque é uma livre recriação da história da Segunda Guerra Mundial. Em vez de permanecer fiel aos registros históricos, Tarantino reinventa a trajetória da última guerra mundial. A sua trama é uma desconstrução histórica. Ou seja, uma versão subversiva na medida em que transgride os limites impostos pelos fatos históricos.

Com efeito, Bastardos Inglórios é um filme iconoclasta porque sacia a sede de retaliação da platéia. Tarantino explora a pulsão de vingança do público. Ao invés de retratar o pavor devastador disseminado pelo exército nazista, ele coloca os holofotes em um grupo paramilitar encarregado de aterrorizar os soldados alemães. Com uma violência brutal, o destacamento homicida encabeçado pelo tenente Aldo Raine (Brad Pitt) extermina os nazistas capturados com requintes de crueldade.

Acredito que vale a pena assistir Bastardos Inglórios porque o filme promove uma discussão sobre as fronteiras entre o real e o ficcional. No livro “Verdade e Método”, o filosófo alemão Gadamer discorre sobre a oposição entre realidade e espetáculo.  Ele afirma que a realidade é a dimensão básica da existência, isto é, a experiência primária do mundo. Posto que tem um caráter aberto, a realidade não tem um finalidade determinada. Sendo marcada pela indefinição do futuro, ela é um horizonte de possibilidades. Por outro lado, o espetáculo é um circulo de sentido fechado. Trata-se de um núcleo de sentido determinado. A sua função é transformar a realidade em uma totalidade de sentido. Ou seja, o espetáculo visa configurar a realidade estabelecendo uma correlação de sentido.

Partido da concepção hermenêutica do filósofo Paul Ricoeur, a realidade é o mundo da vida. A realidade é a pré-figuração. Trata-se da figuração original, isto é, da esfera inicial não-transformada pela obra de arte.  Por outro lado, o espetáculo é o mundo da obra. O espetáculo é o domínio configurado. Trata-se do mundo transformado pela configuração da realidade. Segundo Ricoeur, o objetivo do espetáculo é ordenar os elementos primitivos da realidade. O seu trabalho consiste na esquematização da figuração primeira, ou seja, na estruturação do cenário pré-existente da realidade.

Sendo assim, os filmes nunca poderão documentar a realidade porque sempre serão uma configuração da realidade. Mesmo os filmes que pretendem fazer referência – ato de mostrar – ao mundo dado, eles nunca poderão atingir a realidade já que não passam de uma interpretação da realidade. Logo, assistir um filme implica em entrar no mundo da obra e não no mundo da vida. Acessamos uma proposição de mundo – mundo imaginário habitável – e não o mundo em si mesmo. Como espectadores, a nossa tarefa é identificar o mundo aberto pelo filme. Emergir o mundo projetado pelo filme. Explicitar o mundo contido no filme. Ao invés de compararmos o filme com a realidade, devemos reconhecer que todo filme tem um mundo próprio que necessita ser compreendido. Parece que Tarantino leu Gadamer e Ricoeur.

O cinema é uma manifestação artística que permite pensar a vida e viver o pensamento. Ele apresenta valor filosófico na medida em que estimula a vida pensada e o pensamento vivido.  Tendo em vista que é dirigido para o outro, o cinema é dotado de intenção significativa – “querer dizer”. Trata-se de uma obra de arte que busca a comunicação – transmite uma mensagem. Quando assistimos um filme, contemplamos a beleza de um veículo artístico imbricado de conteúdos. O seu bojo é carregado de idéias.

Além disso, o cinema é uma obra de arte cuja a finalidade é a expressão. Ele expressa a experiência particular e singular do autor, ou seja,  exprime a visão pessoal e subjetiva do autor a respeito do mundo. A sua maneira individual de vivenciar o mundo, isto é, o seu modo único e irrepetível de assumir e habitar o mundo. Assim, um filme pode ser concebido como uma projeção da psique do autor.

Por fim, o cinema tem por objetivo a produção de efeitos. A meta final de um filme é provocar uma radical transmutação no público. Não adianta apenas provocar um impacto na platéia. O espectador absorto pelo filme deve deixar a sala de cinema transformado. A sessão deve produzir uma mudança total na sua forma de experimentar a realidade. O seu modo de ser e estar no mundo deve ser permanentemente modificado.

No livro “Verdade e Método”, o filósofo alemão Hans Gadamer defende a tese de que uma obra de arte deve “empurrar o espectador para a verdade“. Ao assistir um filme, o espectador deve ser “lançado para dentro da verdade”. Que tipo de verdade? Gadamer não está tratando da verdade constatativa e descritiva do mundo objetivante das ciências. O propósito de uma obra de arte não é “arremessar” o espectador na verdade universal e necessária da esfera instrumentalizada do observável. Em vez da verdade pura e a priori do reino formal, Gadamer propõe uma verdade que seja isenta da predicação científica. Uma verdade que seja anterior à linguagem.

Qual seria a verdade mais fundamental proporcionada pelo contato com a obra de arte? Gadamer acredita que uma obra de arte possibilita ao espectador a verdade sobre si mesmo. Isso significa que “entrar” na verdade de uma obra de arte é identificar a verdade sobre si mesmo. Conhecemos e reconhecemos a nós mesmos quando mergulhamos na obra de arte. Ou seja, capturamos a nós mesmos na medida em que imergimos na obra de arte.

Como podemos compreender a nós mesmos através das obras de arte? Gadamer afirma que a obra de arte promove um entendimento de si a partir do momento em que ela “tira o espectador de si”. Ao sair de si, o espectador é levado a apreender a si mesmo. Ou seja, quando o espectador abandona as preocupações cotidianas do mundo da vida, ele “salta” no mundo da obra de arte. Ao “pular” no mundo imaginário habitável da obra de arte, ele é “jogado para fora de si”. Estando fora de si, ele pode compreender a si mesmo na obra de arte. Assim, achamos a nós mesmos quando nos esquecemos na obra de arte. Aos nos perdermos em um filme, acabamos encontrando a nós mesmos.

Em síntese, o cinema possui um estatuto filosófico na medida em que permite que percebamos a nós mesmos. Ele nos impulsiona a entrar em contato com nós mesmos. Quando afundamos na história de um filme, conhecemos uma verdade que escapa da calculabilidade e previsibilidade da razão instrumental científica; conhecemos a verdade sobre nós mesmos.

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